"Eu farei coisas, não sei o que serão, mas hão de ser o horror da terra.
Esperais que eu chore?
Não, não hei de chorar:
Tenho razões para isso, mas o peito há de romper-se em cem mil estilhaços antes que eu chore.
Bobo, eu enlouqueço!"
Rei Lear. Cena IV, Ato II.
O Diretor Franco-Argentino Gaspar Noé realizou, entre os anos 90 e o começo dos anos 2000, três filmes que o lançaram para o mundo do cinema: Carne, Sozinho Contra Todos e Irreverssível.
Por sua virulência metódica em desnudar mazelas, feiúras e pesadelos se tornou unanimidade na aplicação do imperativo ame-o ou odeio-o. Se pudéssemos encaixar sua obra em gênero seria no melodrama, regado com muitas lágrimas, sangue e sêmen. O cerne de sua obra, o existencialismo, aproxima-o de toda cinematografia francesa (seja a boa ou a ruim). Ao mesmo tempo sua obra se afasta por completo da arte feita na França por revelar o que os franceses escondem para o mundo atrás de seu iluminismo, seu espírito revolucionário e seu cinema de arte.
Nosso complexo de cachorro de rua nos faz pensar que quando o senhor fulaninho do interior de um estado pobre estupra a filha ou mata a mulher a pontapés, ou quando queimam um índio ou matam homossexuais é coisa de um país atrasado e ignorante e que só acontece aqui mesmo. Muita coisa só acontece aqui mesmo, mas há um lado bárbaro do ser humano, impresso em seu DNA, que não se ausenta de um povo só por ter a tez clara e olhos de cores frias e mestrado. O barbarismo é comum em todas as sociedades. A França que, inclusive, apresenta um dos maiores índices de estupro por membros da família da Europa (consequentemente do mundo), é a amostragem das atrocidades recorrentes no dia a dia dos quatro cantos do globo.
Noé é um poeta dos fluidos e da brutalidade, ele resume sua narrativa aos primitivimos mais puros e ignorados pela urbanidade moderna e asséptica, mas que insiste em atazaná-la com notícias sangrentas. Para narrar os fatos feios e sujos ele lança mão de recursos de câmera como planos sequências rodopiantes, câmeras que atravessam janelas, entram em úteros e caem ao chão para acompanhar estupros bem de perto. Além disso, Gaspar Noé não se contenta em deixar seu público sentado e comportado observando. Ele cutuca, incomoda e quer transmitir sensações para além do assistir com barulhos de tiro, ultracloses rápidos, câmera na mão e os letreiros narrativos (odiados por críticos famosos super Alto de Pinheiros) que eu, particularmente, acho ótimos.
Um cinema para causar traumas.
O eixo dos filmes gira em torno de um personagem que conhecemos como Açougueiro. Toda biografia e derrocada desse homem nos será descrita da forma mais crua, como a carne que ele corta soca e come.
Tudo que a vida dá ela tira com a outra mão. Nascido no meio da Guerra o Açougueiro começa a vida perdendo...seus pais. Assim sua trajetória será marcada pela perda constante e pela sensação e certeza de que antes de melhorar sempre dá para piorar. Ele se perde pelas ruas de sua pátria que não lhe será grata. Vive a vidinha que mói o corpo de milhões em fábricas e comércios, mas aprende a profissão que irá melhor definí-lo como pessoa. O Açougueiro só quer ser feliz, o resto do mundo não quer o mesmo. Venha acompanhar sua descida ao inferno.
No primeiro filme veremos ele perder tudo que lhe é caro. No segundo ele tentará se reerguer sozinho e perdido e encontrando o que realmente será seu norte. No terceiro ele terá chegado ao entendimento do que ocorreu e de que poderia e iria acontecer com qualquer um que lhe cruza o caminho na rua.
O Açougueiro quer ser afável, ninguém lhe ensinou, ele tenta e a vida o brutaliza até ele explodir. Todas as luzes da obra vão apontar para ele, e todas as luzes irão pifar.
Philippe Nahon é um ator a ser estudado, a carga de fúria velada e frustração que ele imprime ao personagem é digna de antologias (e como as seleções de melhores geralmente estão erradas poucas conterão essa atuação).
O peso do mundo cinza e sem saída vai repousando sob os ombros do Açougueiro. Seus parcos sorrisos vão secando até desaparecer no decorrer das narrativas. Absolutamente tudo que lhe importa o será tirado. E da tristeza e apatia à revolta extrema ao final da trajetória do Açougueiro, que nos é permitido saber, teremos o personagem nú, entregue e como um santo católico ou um yogue que ascende, ele atingirá a iluminação da desesperança entregando a máxima "O tempo destrói tudo" para vida de outros (mais especificamente o triângulo amoroso que irá experimentar todos os gosto da tragédia invertida em Irreverssível).
A vida dura. O nada dentro do nada. A bagunça escondida no quartinho. Os racismos. A pobreza em país desenvolvido. A fome. A doença. A Paris mais feia a figurar numa tela de cinema. A ignorância. A misoginia. O ódio. A raiva. O surto. Um pouco de alívio. O amoral.
Concorde ou não com a execução a conclusão é marcante para quem decide observar a vida do Açougueiro de Gaspar Noé. Obviamente a completa falta de sugestão de imagens em detrimento do explícito atordoa e repudia gerações mais antigas e fascina e atrai por maneira gerações mais contemporâneas.
Tarantino é fã de Gaspar Noé. Queria ser amigo do cara, mas acha ele meio psicopata e morre de medo de lhe apertar a mão.
- Não Vó, ela não come carne...
-Mas nem Bacalhau!? Bacalhau não é carne, né!? É peixe...
-Mas é carne Vó...
-Ah...então come batata. Tem bastante batata.
Concorde ou não com a execução a conclusão é marcante para quem decide observar a vida do Açougueiro de Gaspar Noé. Obviamente a completa falta de sugestão de imagens em detrimento do explícito atordoa e repudia gerações mais antigas e fascina e atrai por maneira gerações mais contemporâneas.
Tarantino é fã de Gaspar Noé. Queria ser amigo do cara, mas acha ele meio psicopata e morre de medo de lhe apertar a mão.
- Não Vó, ela não come carne...
-Mas nem Bacalhau!? Bacalhau não é carne, né!? É peixe...
-Mas é carne Vó...
-Ah...então come batata. Tem bastante batata.